Parafilias e perturbações parafílicas

Conhecidas como “interesses sexuais invulgares”, são definidas clinicamente como “qualquer outro interesse sexual intenso e persistente que não o interesse na estimulação genital ou carícias preparatórias consentidas com parceiros humanos, fenotipicamente normais e fisicamente adultos”.

É um conceito que engloba um conjunto de preferências e condutas sexuais que se desviam do que é geralmente aceite por uma determinada sociedade, num dado momento histórico-cultural, podendo englobar comportamentos muito diferentes e com diferentes graus de aceitabilidade social. É um tema em que coabitam fortes influências legais e morais.

Parafilias são meras preferências sexuais que se desviam da norma, enquanto que perturbações parafílicas são consideradas uma doença mental, marcada por um grau de descontrolo com marcado impacto na saúde, vida relacional do indivíduo ou risco de dano para terceiros, sendo que em grande parte dos casos estas fantasias acarretam grande sofrimento ao indivíduo. É característica essencial e transversal às perturbações parafílicas o facto do indivíduo atuar de acordo com os seus impulsos sexuais com uma pessoa que não o permite, ou os impulsos sexuais e fantasias provocarem mal-estar clinicamente significativo ou défice social, ocupacional ou noutras áreas importantes do funcionamento. Estas condutas frequentemente constituem crimes, podendo acarretar consequências legais e ser puníveis com pena de prisão. O caráter patológico é causado pela intensidade, duração e impacto dos comportamentos parafílicos.

As perturbações parafílicas afetam quase exclusivamente homens, exceto no masoquismo, que predomina no sexo feminino. Pouco se sabe ainda acerca da etiologia, incidência, distribuição e curso das parafilias na população portuguesa. As mais comuns em contexto clínico são o masoquismo, sadismo e o fetichismo, sendo as mais frequentemente encontradas em contexto forense a pedofilia, o voyeurismo e o exibicionismo; estas representam agressões sexuais, caracterizadas por alto nível de impulsividade e repetitividade

A parafilia geralmente inicia-se na infância e vai-se desenvolvendo como resultado de fatores genéticos, biológicos e psicossociais. O cérebro e os seus sistemas neuroquímicos desempenham um papel fundamental. Para o diagnóstico deve ser efetuada uma avaliação por parte de profissionais especializados integrando uma equipa multidisciplinar, que consiste em recolha de história clínica, exame físico, testes psicológicos bem como fisiológicos - esta avaliação deve ser sempre feita sob consentimento, uma vez que existe um conjunto de situações que configuram uma prática criminosa e exigem a quebra de sigilo e reporte às autoridades.

O indivíduo com perturbação parafílica frequentemente realiza numerosas tentativas para suprimir a atividade parafílica mas com o tempo pode aumentar a dificuldade em controlar os atos, sobretudo em períodos marcados por elevados níveis de ansiedade ou outras emoções negativas. Na maioria dos casos o percurso sintomático é cíclico, mas pode ou aumentar ou regredir progressivamente com o tempo. É comum haver uma grande variabilidade (mutabilidade) de parafilias num mesmo indivíduo com o tempo, embora a maioria dos indivíduos dê preferência a uma parafilia específica.

Existe uma tendência para o aparecimento concomitante de perturbações depressivas, abuso de substâncias, principalmente álcool e disfunção sexual. O envolvimento em redes parafílicas geralmente propicia uma intensificação da atividade, algo que tem sido potenciado pela generalização da internet.


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Por Rafael Araújo, Serviço de Psiquiatria e Saúde Mental do CHL

 

 

Tipos de perturbações parafílicas

Existem oito tipos principais de perturbações parafílicas:

Voyeurismo: Excitação sexual intensa e recorrente, manifestada por impulsos, fantasias ou comportamentos, durante um período de pelo menos seis meses, provocada pela observação não suspeitada de um indivíduo enquanto este se despe ou envolve em atividades sexuais. Só pode ser considerada em indivíduos maiores de 18 anos e apresenta uma prevalência ao longo da vida de 12% em homens e 4% em mulheres.

A excitação sexual obtida com este comportamento sobrepõe-se à das relações sexuais; com comportamentos discretos, escondem-se na penumbra ou podem espreitar por orifícios ou até utilizar webcams. O prazer sexual está associado à proibição e ao risco.

Exibicionismo: Excitação sexual recorrente e intensa pela exibição dos próprios genitais a um estranho de forma inesperada, manifestada por fantasias, impulsos ou comportamentos eróticos, recorrentes e intensos, por um período de pelo menos seis meses.

Geralmente é um homem que expõe os genitais a mulheres em locais públicos e com comportamento sexualmente neutro, apenas com o objetivo de as assustar/surpreender. É relativamente comum a associação de masturbação ao ato de exposição pública. Predominante em homens, geralmente tem início na adolescência e diminui a partir dos 40 anos. Frequentemente estes indivíduos isolam-se socialmente e alternam entre a ruminação obsessiva das suas fantasias, e a realização das mesmas num estado alterado de consciência. Os exibicionistas têm uma média superior a 500 vítimas por agressor.

Frotteurismo: Excitação sexual recorrente e intensa por tocar ou roçar numa pessoa que não o permite, manifestada por fantasias, impulsos ou comportamentos, por um período de pelo menos seis meses.

Habitualmente o indivíduo, essencialmente do sexo masculino, procura locais sobrelotados (autocarros, metro, feiras, concertos) para realizar a sua atividade. Os frotteurs apresentam uma média de 900 vítimas por agressor.

Fetichismo: Excitação sexual, intensa e recorrente, quer pelo uso de objetos inanimados quer pelo foco específico em partes do corpo que não os genitais. É manifestada por fantasias, impulsos ou comportamentos durante um período de pelo menos seis meses.

Trata-se essencialmente de uma alteração do objeto de escolha sexual. O fetiche é um elemento necessário para a excitação sexual e a sua ausência condiciona disfunção erétil no fetichista; podem ser objetos cuja atribuição sexual pode ser incompreensivel para os demais (vestuário, calçado, partes do corpo, acessórios). Pode ser usado como único objeto de interesse (passando o orgasmo apenas pela masturbação) ou pode ser incluído nos jogos eróticos com um parceiro. Os vibradores são objetos excluidos desta categoria. Incide mais frequentemente em homens de meia idade, heterossexuais.

Travestismo: A excitação sexual, recorrente e intensa depende de fantasias, impulsos ou comportamentos relacionados com utilização de roupa do sexo oposto (travestir-se). Existe desconforto emocional significativo ou impacto negativo no funcionamento global. O vestuário ou acessórios atuam como um fetiche que é usado pelo próprio como meio de alcancar excitação sexual, conduzindo à masturbação ou ao coito.

Habitualmente inicia-se como uma experiência esporádica que se pode tornar regular com o tempo. Mais frequentemente incide em homens heterossexuais envolvidos em atividades viris, cujo comportamento tendencialmente mais agressivo, competitivo e masculinizado se torna mais efeminado quando travestido. Não se deve confundir travestismo com transexualidade (relativa à identidade de género, conceito diferente), embora exista autores que defendem que existe uma relação mais estreita com as questões da identidade de género.

Pedofilia: Presença de fantasias sexualmente excitantes, impulsos sexuais ou comportamentos, recorrentes e intensos, envolvendo atividade sexual com crianças pré-púberes (menos de 13 anos). O indivíduo atua de acordo com estes impulsos ou estes provocam-lhe intenso mal-estar ou dificuldades interpessoais. Os comportamentos compreendem exposição, masturbação, contacto oral ou penetração.

Frequentemente os pedófilos criam uma aliança de secretismo e lealdade sendo bastante sedutores com as crianças e dedicando-lhes atenção e ofertas, sendo muitas vezes colecionadores de vídeos e outras recordações da criança. Numa proporção substancial existe uma primeira fase de aproximação à família da criança. Existem alguns casos de pedofilia perpetrada por mulheres, mas a esmagadora maioria é perpetrada por homens, podendo iniciar-se na adolescência, sendo mais comum em homens de meia-idade, tipicamente por volta dos 40 anos, casados, pouco empáticos e austeros, frequentemente religiosos e rígidos nas atitudes sexuais.

Acima de tudo, É UM CRIME HEDIONDO!

Sadomasoquismo: Há quem advogue que o sadismo e o masoquismo são faces da mesma moeda, pelo que consideram existir uma frequente mudança de papéis em quem integra atividades sadomasoquistas. Outros autores acreditam existir diferenças importantes que determinam que sejam classificadas separadamente.

É caracterizado pela preferência por atividade sexual que envolve servidão, dor ou humilhação. Masoquismo quando o indivíduo prefere ser o recipiente desta estimulação, e sadismo se é o executante. No entanto, muitas vezes os indivíduos obtêm excitação sexual de ambas as atividades, pelo que esta categoria diagnóstica só deve ser utilizada quando a atividade sadomasoquista é a mais importante fonte de estimulação ou se esta é indispensável para a gratificação sexual.

Apresenta uma prevalência de cerca de 1% nos EUA. As práticas masoquistas são em geral mais frequentes que as sádicas, numa proporção de quatro para um (4:1), sendo que 25% dos frequentadores de clubes de sadomasoquismo são mulheres. Está nas fronteiras do convencional, concentrando muito interesse mediático pela sua exuberância, sendo o caso mais recente a obra literária e cinematográfica “Cinquenta sombras de Grey” de E. L. James.

Masoquismo: Excitação sexual recorrente e intensa resultante de ser humilhado, agredido, contido (por exemplo amarrado) ou submetido a qualquer outra forma de sofrimento.

Num relacionamento sadomasoquista o foco é colocado no poder de assumir o controlo ou abdicar dele; a sua etiologia é multifactorial, podendo derivar de desregulação da disposição poder/agressividade na infância ou neurobiologicamente, podendo resultar de processos orgânicos que fundam os circuitos neuronais da dor com os do orgasmo (por exemplo epilepsia). É a parafilia com maior taxa de prevalência no sexo feminino.

Na variante com asfixiofilia existe a indução de hipóxia cerebral (asfixia auto-erótica se induzida pelo próprio) durante a masturbação ou comportamentos sexuais, através da constrição do pescoço com recurso a cintos, laços, cordas, mãos, etc. A restrição parcial da oxigenação cerebral atua fisiologicamente facilitando a ocorrência de orgasmos mais intensos. É no entanto uma prática sexual perigosa, estimando-se que provoque cerca de 5 a 10 mortes por ano em Portugal. Pode por vezes ser confundida com suicídio ou homicídio, sendo responsável por cerca de 30% dos casos de enforcamento em adolescentes.

Sadismo: Excitação sexual recorrente e intensa a partir do sofrimento físico ou psicológico de outra pessoa, manifestada por fantasias, impulsos e comportamentos.

Frequentemente são atos praticados com consentimento do parceiro, cujo prazer sexual está enquadrado no masoquismo. A gratificação vem do sofrimento físico e/ou psicológico do parceiro. Os atos sádicos incluem humilhação verbal e física, contenção, espancamento, tortura, mutilação e até morte. Em alguns indivíduos o comportamento sádico escala até à violação ou homicídios em série, sendo que alguns sádicos renunciam até à sua sexualidade por receio dos seus impulsos agressivos (fobia de impulso). É mais frequente em homens e muitas vezes está associada a disfunções sexuais.


Existem várias outras parafilias individuais que por serem muito mais raras não são explanadas mas que incluem os seguintes focos parafílicos:

Zoofilia (animais), Necrofilia (cadáveres), Escatologia telefónica (chamadas telefónicas obscenas), Coprofilia (fezes), Clismafilia (clísteres), Urofilia (urina), Hibristofilia (parceiro criminoso ou presidiário), Somnofilia (parceiro adormecido), Misofilia (roupa e produtos sujos de menstruação), Cremastistofilia (pagamento/chantagem), são apenas algumas de entre uma infindável variedade.

Tratamento

O tratamento é difícil e deve abordar os sintomas secundários ao quadro parafílico, nomeadamente episódios depressivos recorrentes e ansiedade.

O principal objetivo é ajudar o doente a obter controlo interno sobre as suas fantasias, impulsos e comportamentos bem como estabelecer medidas de segurança de modo a proteger potenciais vítimas. É importante fazer o doente adquirir crítica para os seus comportamentos e que fique ciente da consequência dos seus atos, uma vez que ele habitualmente nega, minimiza ou racionaliza as suas condutas. Deve ser realizado por uma equipa multidisciplinar que vise não apenas a recuperação clínica como a sua reinserção funcional na comunidade.

O tratamento farmacológico é sintomático, visando essencialmente a redução e controlo dos impulsos sexuais, fantasias e ruminações obsessivas, bem como diminuição da líbido (desejo sexual), através essencialmente de fármacos antidepressivos, antiadrogénios (que atuam na testosterona) e agentes hormonais. Em último caso procede-se a uma verdadeira castração química com a Hormona Libertadora de Gonadotropina.

A psicoterapia cognitivo-comportamental é essencial, visando a aprendizagem de estratégias que o doente pode utilizar para diminuir os impulsos desviantes, e manter o controlo sobre o seu comportamento parafílico. Existem várias técnicas que podem ser empregues por forma a diminuir ou bloquear a excitação sexual inapropriada e estimular a manutenção de excitação sexual não desviante apropriada. Na prevenção de recidiva faz-se essencialmente Restruturação Cognitiva por forma a estimular a capacidade do indivíduo de reconhecer determinados sinais de alerta, identificar situações de alto risco, estabelecer uma rede de suporte social, desenvolver métodos adequados para avaliar a eficácia do tratamento e manter um estilo de vida equilibrado.

Deve ter-se em conta que o tratamento é substancialmente menos eficaz quando não é voluntário, isto é, quando imposto judicialmente, embora haja vários casos de abusadores sexuais condenados que obtiveram melhorias significativas. Os perpetradores de crimes sexuais são pessoas que se controlam mais pelo receio das consequências legais dos seus atos do que por remorsos em relação ao sofrimento das vítimas.