«A tecnologia está a formatar uma maneira de pensar»

Júlio Machado Vaz, psiquiatra, fala das “novas modalidades da relação e comunicação”
Para Júlio Machado Vaz, médico psiquiatra, «a tecnologia está a formatar uma maneira de pensar». Convidado do XXIV Encontro Nacional de Psiquiatria da Infância e da Adolescência, que decorreu no Centro Hospitalar Leiria-Pombal, nos passados dias 15, 16 e 17, o especialista falou das “Novas modalidades da relação e comunicação”, nomeadamente do impacto nas novas tecnologias nas relações e na sociedade, partilhando a mesa com a jornalista Inês Meneses.
Para Graça Milheiro, pedopsiquiatra do CHLP e membro da Comissão Organizadora do Encontro, que juntou cerca de 200 participantes, «foi possível contribuir para o enriquecimento pessoal dos profissionais, o que resulta na consequente melhoria na prática clínica dirigida às crianças, além disso, a componente social envolvida possibilita saudáveis momentos de convívio e a troca interessante e enriquecedora de experiências entre os profissionais – que neste caso foram de muitas áreas: pedopsiquiatras, pediatras, psicólogos, enfermeiros, assistentes sociais, professores, etc.»
Falando das TIC, Júlio Machado Vaz disse que actualmente «a tecnologia é um maná, dá conforto, a sensação de omnipotência no mundo tecnológico», explicando que a timidez é um problema comum, que as novas tecnologia atenuam. Estar na net «é evitar humilhação no mundo real», passando muitas vezes o «mundo virtual a ser mais real que o mundo real».
A dependência da net e deste novo mundo pode tomar tal forma que «se desenvolvem patologias como a agorafobia», vivendo rodeados de ecrãs: telemóvel, computador, etc. «Somos um animal de aprendizagem social e se passarmos anos neste mundo, podemos considerar-nos incompetentes [socialmente]». A maioria das pessoas que cria dependência das novas tecnologias «tem dificuldade em lidar com os tropeções do mundo de carne e osso», além de que as TIC «potenciam a nostalgia e a idealização», explicou o especialista.
Vivemos num mundo de info-obesidade
O excesso de informação é outro problema actual, quando falamos das novas modalidades da relação e comunicação. Júlio Machado Vaz chama-lhe “info-obesidade”. O que acontece actualmente é que não agimos, “reagimos”, porque «é tudo em tempo real, estamos presos no imediatismo, o que em termos de relações humanas traz a possibilidade de complicações. Não controlamos a informação. Os outros podem fazer forward», por exemplo, «perdemos ponderação». Para o psiquiatra, hoje «tudo é urgente», sinal dessa nova maneira de pensar, em que «a urgência é superficial e rápida». «Perdemos a noção de verdadeira urgência», defendeu Inês Meneses.
Uma outra característica deste “novo pensar” é a alteração da maneira de escrever, «um dialecto» para Júlio Machado Vaz, assim como a «possibilidade imediata de reforço positivo», ou seja, nas redes sociais a «comunicação é rapidíssima», e rapidamente se põe um like numa fotografia que se carregou, o que «preenche todas as condições para criar um vício». Para Inês Meneses, estas pessoas, especialmente crianças e jovens, «não têm armas para enfrentar o mundo, que não seja no computador, é uma forma de defesa».
Acresce que «determinadas fronteiras ficam esbatidas», defendeu Machado Vaz: não controlamos o forward, é traída a confiança que depositamos no outro, não temos privacidade. «Não há intimidade do pensamento», explica Machado Vaz, referindo-se aos pais que controlam o dia-a-dia dos filhos, seja violando a sua privacidade, vendo às escondidas os seus telefones, diários, etc., seja através de outro tipo de controlo. Por exemplo em França, infantários permitem que os pais vão acedendo às camaras que o infantário tem instaladas nas salas, e assistiam a tudo o que os filhos vão fazendo. «Sem intimidade do pensamento não pode haver crescimento psicológico, as crianças não podem crescer, e as crianças deixam de ter novidades para contar».
É também «muito importante que haja educação para a triagem, não temos hipótese de ler toda a informação que nos chega». Este novo paradigma, «a possibilidade de aceder a tudo em tempo real», esta «multifuncionalidade» acaba até por ter «repercussões na ciência» porque os investigadores procuram online os artigos mais lidos, mais votados, o que cria unanimidade, uma «bibliografia pobre».
Vivemos um big brother
«Deixamos impressões digitais por todo o lado», atestou Machado Vaz, que considerou vivermos num big brother. Especialmente nas crianças isto cria alguns problemas, nomeadamente no que toca ao espaço psíquico, ficam «patologicamente dependentes». «Em termos de autonomização e de crescimento não é saudável», e no que toca à questão de vigiar permanentemente os petizes, «a hiperprotecção não é uma boa maneira de educar, cria um grau de tolerância à frustração menor, podendo levar a vícios», alerta o especialista.
Paralelamente, levanta-se a questão do anonimato nestas novas relações mediadas pela tecnologia: «a tecnologia permite fazer coisas indelicadas, e tem a possibilidade de não se ser apanhado». Acresce que «a concepção de amizade e de privacidade tem vindo a mudar, há novos conceitos». «Em termos de privacidade os riscos não são verdadeiramente avaliados pelas pessoas», defende Júlio Machado Vaz, acrescentando que «há preços a pagar pela tecnologia». Sendo que nas crianças de hoje esta questão assume maior importância por que «não há essa ambivalência, não conhecem o conceito de amigos verdadeiros como os adultos, assim como o conceito de privacidade», elas «cresceram na era da amizade virtual».
Para o psiquiatra, as novas tecnologias são a forma mais fácil de estragar a vida a alguém, de enlamear, são também o auge do narcisismo. «É preciso que todos aprendam não só a usar as novas tecnologias não só em termos técnicos – e as crianças dominam esta questão - como tudo aquilo que pode surgir da tecnologia; confiar é uma noção muito importante», que se não aprendida, leva a “nodoas engras”. «Na net as pessoas não se podem nunca ir embora, e ser capazes de ficarmos sozinhos connosco próprios torna-se mais difícil», e quando falamos de crianças, que «estão permanentemente ligadas, quase não há tempo psicológico para estarem sozinhas, ficando dependentes de objectos externos».
“Penso, logo existo” vs “like, logo existo”
No entanto é importante não esquecer que «é uma ilusão pensar que isto só acontece com as crianças», «vivemos na sociedade da gratificação, superficial». E neste “novo” mundo, o feedback é crucial. «O like é um estímulo», as pessoas precisam de resposta imediata. Surgindo assim um novo paradigma do pensamento, primeiro “penso, logo existo”, depois “penso, sinto, logo existo”, e hoje, “like, logo existo”, ou “respondo, logo existo”, ou ainda “apareço, logo existo”.
E nesta que é «a sociedade mais adolescente que já existiu», Machado Vaz tem dúvidas que «possamos traçar fronteiras». E deu exemplos: «passámos do pensamento do amor romântico para os homens e mulheres das nossas vidas»; «a adolescência começa cada vez mais cedo, e invadiu a adultice». Uma outra questão ainda levantada pelas novas formas de comunicação e relação, e pela diluição das fronteiras, é a da hipersexualização das crianças: «a mesma sociedade que torna as crianças objectos de desejo, autênticas lolitas, vive aterrorizada com a pedofilia». «Estas são problemáticas muito importantes para quem está a crescer mas não são opostas às que se põem aos mais velhos»: retarda-se cada vez mais a velhice «a mensagem é “pareça mais novo” e não “envelheça saudável”; é preciso educar para a saúde, para que a pessoa envelheça com qualidade e não negar-se o envelhecimento». É uma sociedade de consumo.
O XXIV Encontro Nacional de Psiquiatria da Infância e da Adolescência, organizado pela Unidade de Pedopsiquiatria do Centro Hospitalar Leiria-Pombal decorreu no Hospital de Santo André e reuniu uma centena de especialistas de todo o país para debater as múltiplas interfaces da saúde mental infanto-juvenil.
 
Leiria, 23 de maio de 2013