O que a vontade não pode

Ao longo dos últimos dois anos abordamos várias perturbações da mente – perturbação da ansiedade, depressão, doença bipolar, psicose e esquizofrenia, dependência do álcool, problemas do sono e, no texto anterior, perturbação obsessivo-compulsiva. Todas estas perturbações podem ser uma fonte de infelicidade profunda para os que por ela são afectados, com ondas de choque que atingem familiares, amigos e comunidades.
 
A par destas doenças, fomos também abordando vários tipos de tratamentos, desde os antidepressivos aos electrochoques, passando pela psicoterapia. Contudo, apesar de todos os temas que visitamos, há uma questão que surge frequentemente nas conversas e debates, por ventura menos informados, sobre a Saúde Mental: a vontade. Ou a aparente falta dela.
 
É um erro pensar-se que a existência da doença mental depende da vontade. Quando muito, é o contrário: a vontade é prejudicada pela doença mental. Para o propósito deste texto, utilizamos o termo “vontade” no sentido de “motivação” e de “desejo, força para querer mudar” – é uma simplificação, mas ajuda a tratarmos da questão.
 
No que toca às patologias da mente, de forma geral, a falta de vontade é vista como sintoma de uma perturbação, e não como causa da mesma. Ora, os sintomas são resultado de um processo: o produto de uma máquina complicada como é a mente humana. Repare o leitor que o andar do comboio não é o que faz mover a locomotiva. Não esqueçamos que doenças graves como a depressão e a esquizofrenia são destrutivas para a força anímica e para a motivação, para a vontade de se querer viver ou de se querer construir uma vida. Incentivar a pessoa com tais doenças a querer ter vontade para “sair” da doença é o mesmo que pedir a um peixe para voar: simplesmente não é possível: não há sopro nem asas…
 
Pode a falta de vontade, como sintoma, agravar ainda mais a situação? Com certeza, mas não é o ponto de partida. Da mesma forma que ninguém fica doente por vontade própria, também ninguém se tratará de uma doença mental apenas por querer. Querer ficar doente por se querer ficar doente, sem outro objectivo que não seja a doença em si, poderá ser loucura, não doença mental.
 
Ter vontade de mudar é uma parte importante do tratamento? É, pois, sobretudo em patologias como as dependências e as perturbações alimentares (de que ainda não falamos), por exemplo. Querer mudar resolverá todo o problema? Dificilmente. E porquê? Porque a mente é uma máquina complexa, com algoritmos complicadíssimos e muito intrincados. Repare: é difícil conhecer a mente em abstracto. Mais difícil é conhecer a mente dos outros. Mais difícil ainda é conhecer a nossa. E gerir vontades é como comandar um navio: é preciso conhecer bem o barco para se poder navegar. Nestas doenças a vontade é crucial, mas não chega.
 
Tudo isto se adensa e se complica. Que estafa! Haja vontade para entender!
 
 
Artigo elaborado por:
Daniel R. Machado
Interno de Psiquiatria do Centro Hospitalar de Leiria
 
(Rubrica “Falemos de Saúde Mental”, publicada mensalmente no Diário de Leiria)